John Cheever é um dos escritores que mais entenderam a vida da classe
média americana. Seus contos são relatos precisos sobre o que significa
ter muitas expectativas e somente algumas realizações. Se você gosta de
TV, vale dizer que Cheever foi exaustivamente lido pela equipe que
criou
Mad Men, uma das séries mais aclamadas pela crítica nos
últimos anos. Ele tinha uma enorme capacidade para captar pequenos
movimentos de grande significado.
Cheever também é um dos escritores americanos que mais entenderam a
mídia – até porque mídia é central para uma vida de classe média. Um dos
meus contos favoritos dele se chama
The Enormous Radio.
Cheever descreve, de forma magnética, a vida de um homem e de uma mulher
diante daquele aparelho de metal e madeira. É impressionante ler sobre o
poder do rádio dentro de um apartamento americano nos anos 50. Aquele
som cheio de ranhuras conectava a casa ao mundo.
Esse conto é uma excelente reflexão sobre a mídia porque mostra, de
uma maneira simples e poderosa, o valor que os veículos tradicionais
trouxeram para a nossa vida. Jornais, revistas, rádios e TVs nos
informaram sobre os grandes assuntos que têm impactos gigantescos em
nossas vidas. Eles nos aproximaram da realidade de pessoas que vivem tão
perto de nós – apesar de serem tão diferentes. Eles foram as primeiras
janelas para o mundo e concentraram atenção proporcional a essa
relevância.
O mundo em telas
Com a passagem do tempo, a oferta de mídia aumentou e, ao mesmo
tempo, se fragmentou. Há mais veículos de mídia e mais plataformas para
consumir essa mídia. Porém, a informação não vem mais em um pacote
fechado. Quando você comprava um jornal ou uma revista, a mesma empresa
controlava a produção da notícia, a impressão e a distribuição. No caso
de rádio e TV, elas controlavam a produção e a distribuição do conteúdo
– você só precisava escolher o aparelho. Era um mundo de atenção
concentrada, que produziu grandes empresas. Elas tinham oligopólios de
atenção.
Hoje, as pessoas continuam procurando informação, mas muitas
reportagens simplesmente chegam até elas por canais que não produzem
conteúdo – mas que têm a atenção dos seus usuários. O Google, o
Facebook, o Twitter, o YouTube não produzem conteúdo – são plataformas
que servem para encontrar e distribuir conteúdo, e representam novos
oligopólios de atenção.
Apesar de algumas pesquisas apresentarem dados desencontrados, já dá
para dizer que boa parte das pessoas usa plataformas digitais, incluindo
as redes sociais, como primeira fonte para encontrar conteúdo. O
Facebook é o rádio de John Cheever. É o jornal lido exaustivamente no
trem. É a TV na sala de uma família dos anos 50.
A atenção migrou das plataformas integradas de produção e
distribuição para as plataformas de distribuição e interação. A gráfica e
o caminhão, a antena e a mesa de centro agora são sociais – e estão
ficando móveis. Nós, jornalistas, não temos mais o controle da atenção
das pessoas.
Os dados mostram isso. Em boa parte do mundo, a circulação de jornais
e revistas vem caindo drasticamente. No Brasil, os dados indicam
estagnação, com tendência de queda. A TV ainda é poderosa, mas alguns
dos seus principais programas já não têm os números gloriosos do
passado. Faça um exercício e olhe ao seu redor. Quantas pessoas estão
usando o WhatsApp, o Facebook ou publicando no Instagram ao seu redor? O
tempo das pessoas não é infinito. Se elas estão fazendo algumas coisas,
estão deixando de fazer outras. Os joguinhos de celular, hoje, competem
com o radinho de pilha. O Twitter compete com os editoriais impressos
em papel jornal.
Isso traz um grande impacto econômico. Veículos de comunicação sempre
pagaram boa parte das suas contas com dinheiro de publicidade. As
empresas precisavam falar com as pessoas. Então, fazia todo sentido
gastar dinheiro com quem concentrava atenção. Quando a atenção se
fragmentou e migrou para outros lugares, o dinheiro seguiu o movimento.
Apesar de alguns números não serem públicos nem precisos, já é aceito
que Google e Facebook concentram boa parte da verba publicitária do
planeta.
E o resultado é esse que estamos vendo no Brasil nas últimas semanas.
As empresas de tecnologia contratam cada vez mais gente (inclusive
jornalistas). As empresas de jornalismo demitem cada vez mais gente (e
não apenas jornalistas). Em parte porque as novas fontes de receita não
são suficientes para tapar o buraco na velha mídia.
Os
paywalls, a cobrança por conteúdo implementada por vários
jornais ao redor do mundo, ainda é um experimento. Não há dados muito
precisos, mas estima-se que apenas 1% da audiência online de veículos de
comunicação pague assinaturas digitais. Boa parte das pessoas nunca
chega ao limite de artigos. É uma evidência de que o valor dos bons
produtores de conteúdo não é tão percebido assim pelas pessoas,
infelizmente. Não conseguimos fazer com que muitas pessoas cliquem em
10, 20 links nossos por mês e sintam vontade de pagar pelo que fazemos.
E aí fica a questão: o jornalismo vai sobreviver nesse cenário de
queda? Essa é a questão número 1, hoje. Durante muito tempo, eu também
me fazia essa pergunta, dessa forma. Ela parte da premissa de que o
jornalismo precisa encontrar um novo modelo de negócios para continuar
vivo e exercer sua função pública. É uma ideia que continua viva e
válida. Mas eu acho que chegou a hora de a gente se fazer novas
perguntas.
Aprendi com meus professores na faculdade que uma boa reportagem
nasce de uma mudança de ângulo. Novos ângulos levam a novas perguntas. E
novas perguntas nos fazem pensar em novas abordagens, que levam a novos
textos, áudios e vídeos. Acho que esse é o nosso momento. Uma crise,
como diz o economista Paul Romer, é uma oportunidade grande demais para
desperdiçar.
Da abstração ao valor concreto
Eu acredito firmemente que o jornalismo é essencial para sociedades
livres, democráticas e estáveis. Porém, a frase “o jornalismo é
essencial para sociedades livres, democráticas e estáveis” é uma
abstração. É um credo no qual botamos fé, mas que é difícil de mensurar,
de mostrar e de defender.
Quando nós concentrávamos a atenção das pessoas, não precisávamos nos
preocupar muito em ir da abstração à prática. A abstração, sempre é bom
dizer, continua relevante porque ela fortalece o pensamento. Ninguém
pode se abster de pensar. Porém, a abstração não basta por si mesma. É
preciso trazer o pensamento para a mesa de jantar, para o banco do
metrô, para a calçada.
Como a gente mede o impacto do jornalismo na promoção de sociedades
livres? Como a gente mostra, na prática, que o jornalismo fortalece a
democracia? Como a gente defende que o jornalismo torna a sociedade mais
estável ao deixá-la mais bem informada sobre o que acontece? Nós
passamos décadas sem ter de justificar o que fazemos.
Nesse caminho, também perdemos a noção sobre o valor do que fazemos.
Se você não se preocupa com o valor que cria, você também não mede o
valor do que está entregando. Como você pede o tempo e o dinheiro das
pessoas se não consegue justificar quanto vale aquilo que você faz?
Hoje, nós temos um desafio bem concreto. Como a gente transforma o
jornalismo num item de primeira necessidade? Como a gente convence
pessoas, organizações e empresas a dar seu tempo e seu dinheiro para
quem se dedica a produzir jornalismo profissionalmente?
O jornalismo não concorre apenas dentro do seu próprio mundo. O
jornalismo concorre com o tempo e com o dinheiro que as pessoas dedicam a
tudo o que é importante para elas. Nós precisamos ter uma proposta de
valor mais clara em vez de ficar lamentando que as pessoas não nos dão
valor. Nós precisamos entrar na lista das coisas mais importantes da
vida das pessoas.
Caso contrário, vamos cair no paradoxo da Kodak – a morte dos
vencedores. A Kodak foi uma das líderes do mercado de filme fotográfico,
enquanto esse mercado existiu. Ao atrelar seu futuro a um único jeito
de ver a fotografia, com o processo máquina/filme/revelação, a Kodak
afundou junto com ele.
A mesma coisa pode acontecer com os veículos de comunicação. As
pessoas não vão se adaptar à forma como nós vemos o mundo, muito menos
com a forma como nos preparamos para estar no mercado. Nós precisamos
pensar em novas formas de concretizar o valor do jornalismo.
E esse valor não está atrelado a papel, tela, ondas de rádio. Ele
está na disposição das pessoas em usá-lo, recomendá-lo, pagar por ele,
compartilhar com os amigos. Ou seja: ao lado da questão meramente
tecnológica, há uma questão de utilidade e valor intrínseco. Em vez de
pensar no que o mundo pode fazer pelo jornalismo, precisamos pensar, de
uma forma absolutamente concreta, no que o jornalismo pode fazer pelo
mundo.
A volta ao passado
O jornalismo tem um grande passado pela frente – e isso não é
necessariamente ruim. Costumo usar essa frase para instituições que não
conseguem se reinventar e só olham para trás, como se a tradição fosse o
bastante para construir o futuro. Mas, no caso do jornalismo, isso não é
negativo. De fato, o jornalismo do século 21 pode aprender muito com o
jornalismo do século 19.
Alguns dos primeiros jornais nasceram de necessidades muito claras.
As ideias não circulavam. Elas ficavam presas em alguns círculos
privilegiados e davam muito poder para quem as detinha. Queria saber o
preço do café nos Estados Unidos? Que pena, só algumas pessoas sabiam e
podiam lucrar com isso. Quem era o político mais forte no Senado?
Infelizmente, vai ficar para a próxima. Quais são os escritores com as
ideias mais interessantes? Desculpa, mas isso não é para você. Vai ficar
aqui, no nosso salão de chá.
O jornalismo foi uma força poderosa. Ele quebrou o monopólio que
governos e corporações detinham sobre uma série de informações que,
hoje, circulam com abundância. E ele foi além. O jornalismo também deu
voz a quem tinha o que dizer, mas não tinha como chegar a esses grupos
poderosos. O comerciante injustiçado por uma lei bizarra, o operário
detonado por uma jornada de trabalho exaustiva, o intelectual incomodado
por um ditador de plantão. Todos eles puderam usar o jornalismo como
uma nova possibilidade de serem ouvidos.
O jornalismo criou comunidades e as defendeu. No começo do século 20, o segundo maior jornal de São Paulo era o
Fanfulla,
da comunidade italiana. Era um veículo tão poderoso que ajudou até a
mediar a primeira grande greve do Brasil, em 1917. Já que muitos dos
operários eram italianos, então nada melhor do que colocar o jornal
deles (e feito para eles) como mediador de conflitos. O jornalismo
organizava várias vozes, as articulava e as representava.
O desenvolvimento do jornalismo ao longo do século 20 foi um
desdobramento dessas necessidades e dessa presença. Nosso papel era
revelar tudo que pudesse ser revelado para que as pessoas pudessem pegar
essa informação e fazer com ela o que quisessem. E, no meio do caminho,
criar identidade, afinidade e senso de comunidade.
Essa missão original foi se perdendo ao longo do século 20 na medida
em que a atenção foi ficando cada vez mais concentrada e as empresas
jornalísticas se tornaram cada vez maiores. A concentração de audiência
foi boa para o modelo de negócios baseado em muita publicidade, mas
afastou os veículos das reais necessidades das pessoas. Nós resumimos
nossa relação com as pessoas a um “gosta ou não gosta?” – e a algumas
regras sobre quando ignorar o que elas gostam ou não gostam.
Em vez de pensar sobre o que as pessoas poderiam descobrir e como
elas poderiam fazer isso, em vez de entender a melhor forma de conversar
com as pessoas sobre assuntos relevantes, nós nos conformamos com a
mera identificação de gostos.
E, claro, com um discurso abstrato sobre imparcialidade, verdade, que
muitas vezes é outra conversa muito difícil de ser sustentada na
prática. Nós paramos de surpreender as pessoas. Na indústria da mídia,
em vez de oferecer computadores, continuamos entregando máquinas de
escrever.
E, verdade seja dita, era muito difícil resistir a essa tentação.
Peter Thiel, fundador do sistema de pagamentos PayPal e obcecado com
inovação, costuma dizer que monopólios e oligopólios não precisam se
preocupar muito com modelos de negócio ou em entender as pessoas.
Monopólios e oligopólios são excelentes modelos de negócio por si – até a
chegada de uma onda que os quebra.
O jornalismo não precisa ser populista e fazer apenas o que as
pessoas querem. Mas o jornalismo precisa entender como falar sobre
coisas que as pessoas precisam, de uma forma que as pessoas desejem.
Nós vamos continuar precisando de pesquisas de opinião, mas também
vamos precisar cada vez mais de antropólogos que nos digam como as
pessoas consomem e usam informação. Vamos precisar de programadores e
designers que nos ajudem a pensar nas melhores formas de entregar
informações relevantes. Vamos precisar de pessoas, de profissões e
formações ainda indefinidas, que nos ajudem a pensar em como aumentar
drasticamente o impacto daquilo que produzimos.
É um desafio muito maior do que decidir se vamos ou não colocar
paywalls ou cobrar por acesso a vídeos digitais. É como transformar “defesa da democracia” em algo concreto. Isso é grande.
A empresa jornalística
Maria Popova faz o site de uma pessoa só – e vive bem com ele. O site dela, o
Brain Pickings,
cobre literatura e arte. O volume de visitas não é gigantesco, mas é
bom o suficiente para manter uma comunidade fiel e ser notado pelas
empresas de comércio eletrônico. Algumas delas perceberam que as pessoas
que vinham do site de Popova fatalmente compravam os livros indicados.
Era uma taxa de conversão absurda, muito maior e melhor do que qualquer
anúncio.
Até então, Popova sempre vivera das doações e assinaturas que as
pessoas faziam no seu blog. Ela foi uma das primeiras pessoas a
conseguir se manter apenas com o dinheiro que pedia à sua audiência.
Até que uma das empresas de comércio eletrônico quis colocar banners
no site dela. Popova demorou uns dias, mas recusou o dinheiro.
Publicidade vem e publicidade vai, ela disse, mas meus leitores vão
ficar sempre comigo e eles podem não gostar dos anúncios.
Foi um choque. Uma empresa tradicional de jornalismo não pensaria
duas vezes em aceitar o que Maria negou – inclusive as empresas
digitais. Banners estão na ampla maioria dos sites jornalísticos do
mundo.
Alguns dias depois, a empresa voltou à Popova. Dessa vez, sem
banners. O acordo era simples. Ela poderia escrever o que quisesse,
sobre quem quisesse. Mas, sempre que colocasse link de um livro e
enviasse alguém para essa companhia de comércio eletrônico, ela
receberia uma comissão generosa pelas vendas. Ela escreveria o que
quisesse, sobre o que quisesse. Mas, como as métricas de Popova eram
claras e funcionais, conseguiu um belo acordo.
O Brain Pickings continua no ar até hoje. Eu sou um leitor fiel do
blog, dou minha contribuição mensal a ela e não me sinto nem um pouco
incomodado com os links identificados, que permitem que eu compre algo e
repasse parte para ela. Pelo contrário: fico feliz de financiar alguém
que encontrou um modelo baseado num relacionamento claro e honesto com
uma comunidade de pessoas.
Hoje, um dos maiores desafios é definir o tipo de empresa que produz
jornalismo. O Brain Pickings é um exemplo, e seu caso não pode ser
generalizado. Mas ele mostra que, sim, existem outras formas de manter
um bom veículo além do jeito consagrado que conhecemos e hoje naufraga.
Para o bem e para o mal, as estruturas jornalísticas geradas ao longo
do século 20 são grandes e caras. Elas são o resultado de um modelo de
fazer e de manter empresas produtoras de conteúdo que foi depurado por
décadas antes da revolução digital. E cujo modelo não serve mais.
Segundo a
Harvard Business Review, a redação do
The New York Times,
com mais de mil jornalistas, responde por apenas 15% do custo da
empresa, praticamente a mesma porcentagem consumida pelo departamento
comercial. O resto está espalhado nos custos da operação – gráfica,
distribuição, administrativo. Esse custo todo, que é indireto em relação
à produção do jornalismo, é muito alto, mas se justificava.
Afinal, essa estrutura era pensada num cenário em que 75% das
receitas vinham da publicidade. Você tinha uma estrutura de despesas
ajustada ao tipo de receitas com que contava. Porém, essa conta não
fecha mais – e talvez nunca mais volte a fechar. Os veículos de
comunicação não conseguem mais viver de distribuir publicidade – em
qualquer formato.
Marcus Brauchli, ex-editor executivo do
Washington Post e
atualmente diretor da North Base Media, uma companhia que investe em
novas empresas de mídia, costuma dizer que a era das grandes empresas e
das marcas jornalísticas acabou. Ele não está sozinho nessa. Brauchli
vocaliza uma tendência.
Para muita gente, muitas empresas pequenas e médias vão ocupar os
espaços deixados pelo fim de grandes empresas. Mais enxutas, focadas em
necessidades e públicos mais específicos, essas novas companhias podem
ser mais sustentáveis ao longo do tempo porque vão ter contas muito
menores para pagar.
É como se o jornalismo tivesse nascido como uma profissão de pequenos
artesãos, se transformado numa gigantesca fábrica de porcelana
industrial e, agora, estivesse se transformando num ofício organizado em
empresas de pequeno e médio porte, altamente especializadas.
Algumas dessas empresas estão pensando em formas novas de fazer e
distribuir conteúdo. Há sites que se mantém com doações de leitores e
pequenas assinaturas. Há outros que estão vivos com dinheiro de
fundações, como a
ProPublica, nos Estados Unidos. Nenhuma delas é ou sonha ser um conglomerado.
Claro que isso deixa muitas questões em aberto. Uma delas, bem
concreta: quem paga os custos judiciais de uma empresa jornalística
média que fez uma investigação rigorosa e descobriu os problemas de uma
corporação ou de um indivíduo poderoso?
Outra questão é pensar no peso das instituições. O tamanho das
empresas jornalísticas lhes deu força para se contrapor a governos e
empresas ao longo dos anos. Como isso acontecerá num cenário de pequenas
e médias empresas, com menos fôlego para continuar “publicando aquilo
que alguém não quer ver publicado”? Essa rede será suficiente para impor
medo a um prefeito corrupto ou a uma corporação que devasta?
Tem mais. O tamanho colocou as empresas numa posição de escrutínio
público e de responsabilidade. Por mais críticas que a gente tenha aos
veículos tradicionais, eles não podem flertar com o delírio. O custo do
descrédito é grande demais.
Num cenário extremamente fragmentado, o preço para espalhar boatos e
imprecisões é relativamente mais baixo. Eu fico surpreso quando alguns
amigos, inteligentes, críticos, compartilham textos e vídeos de fontes
duvidosas. Nas eleições, amigos queridos compartilharam coisas absurdas
por WhatsApp.
Fomos bem rápido de um cenário altamente concentrado para um mundo
altamente fragmentado. E aí a gente acaba colocando no mesmo balde
veículos e pessoas bastante diferentes. Ainda não conseguimos criar os
canais de confiança necessários. Estamos na era do “vi na internet”, e
isso basta, como se a internet fosse uma instituição de produção
jornalística. Não é.
O Facebook, que se confunde com a internet para muita gente, é um
filtro social, e não um filtro de confiança. Porém, muita gente toma
filtro social como filtro de confiança. É uma tecnologia poderosa e
admirável de distribuição, mas ele não está no negócio da verificação de
informação. É um problema que ainda não resolvemos.
O mundo novo do jornalismo provavelmente vai ter menos poder
concentrado nos veículos, e talvez mais concentrado nas plataformas de
distribuição. Talvez muitos desses veículos médios e pequenos tenham de
se unir, em algumas situações específicas, para fazer acordos com Google
e Facebook. Talvez eles ainda possam se unir para fazer coberturas
específicas e caras, como recentemente alguns jornais brasileiros
fizeram para reportar problemas em universidades públicas. Muitos,
especialmente em áreas sensíveis, vão precisar unir forças para pagar
advogados e se defender de processos.
Vivemos uma era de relação e interdependência. As iniciativas
jornalísticas não funcionam mais como silos corporativos, mas como um
sistema integrado de empresas atuando, produzindo e colaborando
pontualmente – e não porque são hippies, mas porque o modelo de negócios
requer essa colaboração. Nenhum editor mais pode ser uma ilha.
A gente caminha para um mundo de empresas menores, mais focadas e
mais leves, talvez com algumas grandes empresas em alguns setores
específicos, especialmente, creio eu, na área de vídeo. Essa transição
pode garantir mais empregos, aumentar diversidade, mas pode ter custos
que não somos capazes de predizer hoje. Essa análise vai requerer
pesquisa e reflexão. O século 19 nos inspira, mas ele não pode ser
transposto ao século 21 ingenuamente.
O conteúdo é só o começo
Nesse cenário de mudança e transição, ainda há uma nebulosa que
brilha diante de nós e que não nos permite ver com clareza o que está
ali na frente. Cada vez fica mais claro que jornalistas, além de
escrever, filmar ou narrar, vão ter de conversar com os leitores.
Esse papo começa na área de comentários, mas pode continuar num
evento pago em que as pessoas vão para entender um problema muito
complexo. Um grupo de jornalistas que cobre o Poder Legislativo, por
exemplo, poderia explicar a lei da terceirização em uma série de
artigos, continuar com a conversa nos comentários e nas redes sociais e,
durante um ou dois dias, participar de um evento pago para aprofundar o
debate.
O tempo não será mais apenas dedicado a produzir uma série de
reportagens, muitas delas sem muito valor percebido. O tempo de trabalho
também será dedicado a criar relações – e os profissionais também serão
remunerados por isso.
Não é algo novo no planeta. Bandas e escritores já sabem que o disco
ou o livro são apenas o começo de uma série de relações econômicas que
estabelecem com o mercado. Mas, acima de tudo, eles sabem que precisam
fazer sentido e entregar valor.
Ninguém paga ingresso para ver um show porque quer incentivar a
música em geral, mas porque gosta daquela banda em particular.
Jornalismo não é música, mas podemos aprender uma ou duas coisas com
profissionais que passaram por essa avalanche de mudanças antes de nós.
A
The Economist sabe que há uma escassez de informação para
uma elite global. Além da revista, ela tem um núcleo de inteligência e
consultoria que abastece as pessoas mais ricas e poderosas do mundo com
análises que fazem diferença nas carreiras e nos negócios delas. O
conteúdo é um serviço independente, que fortalece os serviços de outras
áreas da empresa.
Em alguns casos, o trabalho jornalístico pode ser mantido por
fundações que veem impacto público no que o jornalismo faz. Elas não
financiam o conteúdo, mas o que esse conteúdo é capaz de fazer: abrir
uma investigação sobre corrupção, mobilizar as pessoas para uma causa,
impulsionar a criação de uma lei.
O
Marshall Project,
que cobre Justiça nos Estados Unidos, e a ProPublica, referência em
jornalismo investigativo, são dois exemplos internacionais desse modelo.
Eles se preocupam em produzir reportagens de impacto, que depois são
distribuídas por vários canais, incluindo os veículos tradicionais. São
novas alianças e novas formas de entender a produção jornalística.
Nesse cenário, fundações financiam impacto e jornais são instituições que ampliam esse impacto. O
New York Times
não precisa pagar a investigação toda porque ela já foi feita e paga
por um grupo especializado e respeitado. Esse é um modelo bem
interessante, nesse momento de transição, porque cria alianças, testa
modelos e constrói valor. Não à toa, a
Knight Foundation, nos Estados Unidos, é uma das organizações que mais vem colocando dinheiro nessas novas iniciativas.
Outra forma de gerar valor é lançar mão desse ambiente de abundância de informação.
Na era dos boatos, o jornalismo prova que, sim, ainda é necessário e
continuará sendo necessário separar boato de fato. O bom senso continua
sendo escasso – e isso tem valor.
O jornalismo bem feito pode suprir essa mercadoria raríssima no
mercado de informação. Ele pode fazer a diferença entre disseminar
loucura em um mundo atolado por informação desencontrada ou entregar
esclarecimento por meio de uma história bem contada, que se desdobra
numa série de impactos reais positivos em nossas vidas. É mais fácil
pedir dinheiro ou apoio quando você prova o impacto concreto daquilo que
você faz.
Há diversas outras formas de enxergar o conteúdo como o começo de uma rede de valor. Há quem diga que são 76, exatamente,
como David Plotz, ex-editor da revista digital Slate.
De qualquer forma, essas formas de financiamento que veem o conteúdo
como o começo de uma entrega maior, e não como o fim de uma relação com
as pessoas, continuam crescendo. Uma delas pode estar exatamente… na
relação com as empresas de tecnologia.
Se o conteúdo jornalístico cria valor para os usuários do Facebook,
como o Facebook pode manter a criação desse valor dividindo receitas com
quem produz conteúdo confiável e de qualidade?
Não é simplesmente bater na porta do Facebook e pedir parte da
receita publicitária usando argumentos que já foram rebatidos. Quando os
veículos batem lá, ou no Google, pedindo receita pelo conteúdo que
circula nessas plataformas, as empresas de tecnologia devolvem dizendo
que elas criam audiência – e valor – para esse conteúdo. Sem audiência, o
conteúdo não tem valor. Enfim: essa porta está cerrada, esse jogo está
perdido.
Por isso, é preciso colocar a questão em outros termos.
É preciso mostrar para o Facebook, com evidências, que seu negócio
também correrá riscos, a médio e longo prazo, caso se transforme apenas
numa plataforma de boatos, conspirações e gatinhos fofos.
Até porque, com o tempo, vai ser cada vez mais difícil para o
Facebook sustentar a versão de que é apenas uma plataforma que não tem
nenhuma responsabilidade sobre o que é publicado lá.
Leia mais em
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